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WALMOR CORREA

por Milena Durante

As quatro pinturas de Walmor Corrêa que estão em "Contar o tempo" foram feitas durante 2020, o primeiro ano da pandemia no Brasil. Neste momento em que o isolamento social estava mais acentuado no país, a partir da sua janela o artista observava pássaros em busca de alimentos já não tão disponíveis à medida que restaurantes e bares se encontravam todos fechados. Incomodado com a falta de comida para essas aves, Corrêa passa a alimentá-las com arroz e recebe uma reprimenda de um amigo: “você não deve alimentá-las, elas têm que morrer mesmo”. Daí em diante, incomoda-se com a afirmação categórica e questiona-se sobre os métodos e pontos de vista a partir dos quais são dadas as formas, regimes e sistemas de exclusão. Quem determina o que deve morrer e o que deve viver? Como isso se dá, e a partir de quais perspectivas?

Por sua relação direta com a pandemia, a questão traz desdobramentos e questionamentos pesados que, se analisados em relação ao contexto real da situação das centenas de milhares de pessoas mortas, sem emprego e sem moradia, toma proporções às quais suas pinturas não têm como responder. Nelas, entretanto, assim como em boa parte do conjunto de sua obra, o artista faz uso de técnicas de desenho e pintura próximas à catalogação de espécies, de modo que o observador é atraído e se identifica com seres que, em outras circunstâncias, não se identificaria. Sejam eles reais, no caso dos trabalhos Noturno, A Velha a Fiar e Paca, Tatu, Cotia Não, ou imaginários, no caso de Diurno, é possível observar que há uma tentativa de seduzir o espectador em direção a animais de que “as pessoas talvez não gostassem, como os morcegos”, segundo o artista. Se no período da pandemia a relação entre os morcegos e a disseminação da Covid-19 – e a de fake news – é indissociável, é através desse tipo de técnica aparentemente realista que Corrêa busca formas de convencimento capazes de nos levarem ao questionamento da operação dos regimes de verdade, como faz também em diversos outros momentos de sua obra. 

A falta de perspectiva e de profundidade, as espécies existentes ou imaginárias espalhadas em um mesmo plano, trazem algo de uma estampa, de um universo imaginado ou lembrado da infância, e remetem ainda à ausência de linearidade do tempo, estabelecendo uma relação com os tempos de isolamento social e sua percepção estendida, a sobredeterminação do espaço. Uma referência, talvez, àquilo que existe em conjuntos e categorias abstratas, espalhado de modo constelar em mapas imaginários, e aos métodos modernos de catalogação, separação e desencantamento.

Em Paca, Tatu, Cotia Não, o artista refere-se aos povos indígenas amazônicos que se  alimentam das carnes de caça de paca e tatu, mas não de cotia, pois os filhotes dos dois primeiros são fortes e, como aquilo que comemos se torna nosso, excluir a cotia significa evitar filhotes fracos como os dela.

Já na pintura Noturno foram escolhidos animais brasileiros de hábito norturno, como gambás e raposas. Corrêa afirma apresentar nesta pintura “a natureza como ela é”. Sua obra, entretanto, parece estar em franco confronto com os métodos científicos modernos, dissecando suas estratégias de convencimento e técnicas de atração, assim como a construção de verdades, e os problemas e impossibilidades da definição precisa de categorias como natureza e cultura, por exemplo, conforme apresenta Bruno Latour em Jamais Fomos Modernos (1991).

Em A Velha a Fiar, a hierarquia entre humanos e bichos é abordada, enquanto em Diurno, possivelmente a mais intrigante de todas, com suas misturas inventadas de espécies, cria uma fricção e camufla-se em meio às demais em que os seres são reais. Não é possível identificar imediatamente a estranheza das criaturas imaginárias em relação às outras, fazendo-nos conferir em nossa memória, nosso conhecimento, quais criaturas realmente existem e quais não. Quem teria certeza absoluta se há infiltrados entre os existentes e os imaginários? Como se dão essas separações?

Se em trabalhos anteriores o artista se interessa pela engenharia reversa dos mitos, por modos de explicar o inexplicável, criando relações entre a invenção e a ciência, aqui Corrêa busca listar as coisas existentes e, no meio delas, escamotear aquilo que não existe – ou pelo menos ainda não. Contrapõem-se assim as referências mais díspares – desde as espécies geneticamente misturadas a humanos em “Camille Stories”, presentes no livro Staying with the Trouble (2016), de Donna Haraway, até o ornitorrinco. Nessas histórias de Haraway há uma esperança no futuro e na colaboração, na utilização da tecnologia e da engenharia genética com vistas à preservação da espécies em extinção. Do outro lado, apresenta-se a realidade mais imediatamente próxima da incapacidade e a inabilidade do ornitorrinco, animal comparado ao Brasil em metáfora de Chico de Oliveira: “um bicho que não é isso nem aquilo (ou 'herói sem nenhum caráter'?)”.

Se ao longo de seu trabalho, Walmor Corrêa tem se mostrado interessado pelos regimes de possibilidade da existência, seja de espécies, de mitos, histórias, lendas, e pelos processos de construção daquilo que é considerado verdade – e que, portanto, consegue ou não sobreviver, deve ou não morrer –, neste conjunto específico de pinturas, em oposição a alguns de seus trabalhos anteriores, onde mostra seres mitológicos dissecados, todos estão vivos, mostrados numa estranha e impossível situação harmoniosa pertencente ao abstrato mundo das ideias: sem tempo, sem espaço, sem lugar.

Ainda que tenha questionado as verdades científicas anteriormente, Corrêa sabe que cada verdade tem um período de validade: até que surja a próxima. Através dos equívocos e erros é que se chega ao próximo resultado, tão verdadeiro quanto provisório. É isso o que temos e é com isso que podemos contar. Talvez devido aos questionamentos àquilo que, na ciência, não apresenta qualquer dúvida – a Terra é redonda e as vacinas salvam ao invés de matar – nesses trabalhos específicos, o conjunto dos sistemas de categorização, abstração, diferenciação e agrupamento, é o que está posto em questão. 

Assim, as pinturas de Walmor Corrêa acionam nossa capacidade de perguntar e questionar, de duvidar de nossos conhecimentos, referências e memórias, atraindo e seduzindo por sua técnica ao mesmo tempo em que geram a impressão de rigor científico e realismo mesmo quando nenhum deles está de fato presente. Apontam e indicam como se dão os processos de construção de verdades e consensos, discursivos, imagéticos e científicos, reflexões fundamentais para que se possa começar a confrontar as fake news e o negacionismo que nos são impostos nos tempos atuais.

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