
ROSANA PAULINO
por Nina Barreto
Os trabalhos de Rosana Paulino presentes em "Contar o tempo" apresentam momentos distintos de seu percurso. Enquanto os desenhos e linogravuras feitos nos anos 1990 têm como contexto o espaço de formação acadêmica em artes plásticas – mostram uma artista experimentando materiais, criando personagens e autorretratos –, as duas litogravuras da série Assentamento (2012-2013), por exemplo, mostram controle e inventividade técnicos, fruto de uma pesquisa histórica e plástica bem mais madura.
Com graduação, mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo, Rosana se especializou em gravura pela London Print Studio e, como alguém que vem das margens e atua em espaços historicamente destinados às elites (a academia e as artes visuais), logrou a posição de ponta de ponta de lança no que tange à produção contemporânea brasileira de autoria negra e sua entrada nos circuitos de arte. Além disso, a artista também pavimenta sua carreira estabelecendo diálogos transnacionais com outros/as artistas e pesquisadores/as, especialmente estadunidenses, ao tensionar a relação entre ciência, história e invenção da raça.
Rosana tem mente de gravurista, atenta às questões próprias da linguagem: matriz, impressão, precisão/imprecisão, turvo/nítido, cheio/vazio. Essa forma de pensar – fruto de um interesse técnico-plástico que protagoniza muitas de suas obras – foi construída lado a lado com a prática do desenho, representada nesta exposição por obras das séries Autorretrato com Máscaras Africanas (1997-1999) e Models (1996) e por um desenho sem título que apresenta uma mulher com vários seios. Os traços imprecisos são uma constante nas obras, e dão uma sensação de movimento: linha a linha forma-se um braço, a barriga. Um ombro é feito por uma série de curvas sobrepostas e um emaranhado assume o papel dos pelos pubianos. Já em Assentamento, o desenho de raízes e galhos traz organicidade à litogravura em descompasso com a dureza da imagem de uma mulher negra nua, fotografada no Brasil durante o período escravocrata, que ocupa o centro da imagem.
Em Autorretrato com Máscaras Africanas, particularmente, estão presentes tanto o uso do desenho enquanto linguagem quanto o imaginário fotográfico que se tornou fonte de pesquisa e contribuiu para a criação de obras como Atlântico Vermelho (2017), ¿História Natural? (2014) e Assentamento (2012-2103). O título dos autorretratos anuncia que a artista criou uma imagem de si mesma e talvez não haja uma pessoa negra que não tenha feito exercício parecido: de imaginar como seria usar grilhões ao ver fotografias do período escravista; de pensar como seria se fosse asfixiada por um policial dentro do supermercado ou por seguranças em uma estação de trem.
Essa prática, que serve à sedimentação de uma consciência racial, povoada por imagens ora inventadas ora coletadas da memória, é recorrente também no trabalho de outros artistas, como vemos em Gargalheira ou Quem Falará por Nós? (2014), de Sidney Amaral. Nesta obra, um homem (o próprio artista) aparece com uma gargalheira no pescoço cuja extensão, em vez de correntes ou ganchos, posiciona microfones ao redor da cabeça – abrindo espaço para o que há de dúbio em objetos que serviriam à amplificação da voz.
Os autorretratos de Rosana, no entanto, guardam outra dubiedade: em todos eles vemos uma mulher nua usando uma gargalheira e uma máscara triangular, referenciada pelo título como africana. Objetos quase opostos, um de tortura formulado para a escravização e outro que remete a culturas autóctones, ocupam o mesmo corpo. Não há vestígios da dramaticidade que daria sentido litúrgico ao uso da máscara, como aquela que acompanha o uso das paramentas (objetos conceituais sacralizados utilizados por divindades africanas cultuadas e reelaboradas no Brasil).
Por seu uso provisório, parece ser menos uma referência ao continente e mais à “‘África’ que vai bem nesta parte do mundo”, nas palavras de Stuart Hall; aquela formulada na diáspora negra do século XV e que é índice de disputas, apropriações e traduções científicas, litúrgicas e estéticas, e que dá sentido aos exercícios que ajudam a pensar agências políticas no presente.
