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DORA LONGO BAHIA

por Lola Fabres

Em “Contar o tempo”, Dora Longo Bahia propõe um encontro de paisagens que atestam brevidade e pressupõem seus próprios apagamentos. Borralho (Cubatão) e Borralho (Jaci Paraná), trabalhos de 2022 em acrílico sobre linho, apresentam-se como telas escuras quase homogêneas, mas que avisam aos poucos – a depender de como se vê – paisagens escondidas atrás de camadas opacas de veladuras verniz. Borralho, termo que denota um resto de braseiro que ainda queima e tinge tudo de cinza, surge designando essas superfícies, ao mesmo tempo em que alude a uma materialidade que suprime territórios que se esforçam a resistir.

 

Cubatão, cidade tida como a mais poluída do mundo na década de 1980, evidenciou o impacto da emissão de gases industriais sobre a população e o bioma do entorno e pauta até hoje o debate que lida com o desafio de contenção de poluentes no país e afora. Jaci Paraná, reserva extrativista de Rondônia que enfrenta a invasão de grileiros, madeireiros e o avanço do agronegócio, foi há pouco cunhada a capital brasileira da queimada, haja vista a dimensão do desmatamento que a assola no cenário recente. Transportadas ao campo pictórico, essas paisagens-sínteses de uma crise anunciada, elididas pelo apagamento e pela coerção, atuam como símbolos de um desmonte ambiental cujo ritmo se acelera a cada dia.

 

Junto às telas, duas imagens fotográficas tiradas da série Brasil X Argentina (2017-2021) também compõem o conjunto de obras. De um lado, uma massa glacial em tom celeste reluzente esfacela-se aos poucos; do outro, restos de galhos e matéria orgânica escancaram um solo seco, abrasado e infértil a olho nu. Entre dois extremos de um mesmo hemisfério (entre Perito Moreno, no Sul da Argentina, e a região amazônica ao Norte do Brasil), cria-se uma dicotomia quase ambivalente, já que a aparente oposição entre as duas imagens – esse suposto antagonismo tanto visual como geográfico que se estabelece entre elas – dissolve-se aos poucos reforçando analogia. Afinal, tanto em uma como na outra se avista uma mesma terra em agonia que alerta seu colapso. 

 

Desse modo, seja na evidência objetiva da linguagem fotográfica, seja na construção pictórica de paisagens que se empenham em existir, estabelece-se um diálogo entre territórios que corroboram entre si diferentes resultantes de um só coeficiente, já que tanto frente à mata que vira pasto, à montanha de gelo que se desmonta em água ou junto à fumaça que adoece um município, residem retratos das condições e consequências de um mesmo sistema incapaz de se acomodar em equilíbrio na sua própria lógica – e que condiciona a todos como espectadores e reféns dos sintomas da força humana que avassala a si mesma.

 

Além do mais, ao trazer a paisagem como elemento protagonista – ao se atentar a cenas remotas supostamente desconectadas dos compassos da cidade grande (mas também dela decorrentes) –, Dora Longo Bahia distancia-se do universo imagético urbano que em geral marca presença na sua produção, mas ainda assim opera com visualidades que rondam reiteradamente o imaginário social da atualidade. Isso porque as paisagens em discussão atravessam diariamente o debate midiático, circulam nas manchetes e veículos de notícia, pautam embates políticos, documentam estudos, multiplicam-se e se adulteram em meio às disputas travadas pelas redes digitais, ao mesmo tempo em que importunam o livre ímpeto do mercado que por fim as atropela na sua soberania. 

 

É assim que, além de firmar um testemunho de uma crise ambiental em curso, a artista assinala também crises relativas ao próprio universo da representação, já que a potência atrelada ao campo das visualidades e ao seu vetor crítico e comunicativo parece hoje em dia se distrair em meio aos usos e desusos a ela atribuídos. Portanto, Longo Bahia não deixa de colocar em xeque o lugar da imagem e da representação ao se encontrarem sequestradas por sua própria saturação, ou de indagar maneiras para que a capacidade dialética da produção artística possa ser mobilizada em resposta aos desafios atuais, na negociação entre a experiência estética e a realidade material, em seus esforços de sensibilização.


E por compartilhar o atestado de um processo vertiginoso de derrocada da ordem natural, as imagens de Brasil X Argentina, além de demarcarem um campo de tensão entre iminência empírica e conhecimento epistêmico, delineiam, na sua própria materialidade fotográfica, um desejo de interrupção. Como se buscassem recursos que pudessem permitir algum freio ou suspensão, salientam sinais explícitos da captação analógica (tais como as informações de registro à borda do filme) de forma a enfatizar a linguagem fotográfica em seu atributo central: como artifício capaz de paralisar o que segue em curso ou de conter o ritmo daquilo que avança sem controle. Já frente aos trabalhos pictóricos, intui-se outra conjectura de tempo. Na órbita dessas imagens encobertas, confronta-se a distensão que rege a escala temporal geológica e o senso de urgência fruto do impacto e das intervenções atuais. Sobre essas paisagens, impõe-se o alerta a regimentos que desorganizam sua modulação cíclica natural e que avisam um tempo irrevogável – algo que, em consequência, dispara no espectador uma experiência estética da finitude.

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