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lustrações recicladas de artigos científicos, utilizadas como fonte de inspiração em Cacos.

Fragmentos de cerâmica pintada Tupiguarani, com motivos em vermelho e preto sobre engobo branco. Fonte: CHMYZ, Igor et al. “A arqueologia da área da mina Dois Irmãos, em São Mateus do Sul, Paraná”. In: Arqueologia: Revista do Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas. Vol., 6., 2009, p. 103

Formas da cerâmica arqueológica Guarani. Retirado de FACCIO, N. B. Arqueologia Guarani na Área do Projeto Paranapanema: estudo dos Sítios de Iepê, SP. Tese (Livre-Docência em Arqueologia), São Paulo, Universidade de São Paulo, 2011.

ADRIANA MORENO E

MARINA ZILBERSZTEJN

por Janaína Nagata Otoch

 

O trabalho de Adriana Moreno e Marina Zilbersztejn se faz, quase sempre, a partir da sobreposição de camadas. A prática do desenho a quatro mãos, no qual o traço de uma se sobrepõe ao traço da outra, não é, senão, uma prática de desenho em camadas. Do mesmo modo, os demais procedimentos e técnicas gráficas privilegiadas em seus projetos em conjunto favorecem a construção de estampas a partir do acúmulo de impressões. Também os objetos escolhidos como ponto de partida, na maior parte das vezes, costumam exibir as marcas do tempo, engastadas nas camadas visíveis de sua própria superfície material.

Algo não muito diferente acontece com Cacos (2022). Como em trabalhos anteriores, as estampas dessa série resultam de um processo conhecido como monotipia – nome que, por sua vez, designa um conjunto de técnicas mais ou menos distintas, que compartilham entre si apenas o fato de serem um híbrido entre pintura, desenho e gravura e de produzirem obras únicas, que não podem ser reproduzidas em série, como ocorre com outras técnicas gráficas. Em Cacos, o tipo de monotipia empregado por Adriana e Marina envolve a entintagem uniforme de uma chapa de metal, que, ao receber a tinta em toda a sua extensão, passa a funcionar como uma espécie de superfície sensível de contato. Diretamente sobre essa chapa, é colocado um papel que recebe a tinta, registrando todo e qualquer tipo de pressão: desenhos, gestos. O que vemos no resultado final, entretanto, não são os desenhos ou gestos em si, mas as marcas produzidas pelo contato entre a superfície entintada e o papel; isto é, os rastros, sinais e indícios do traço ou da ação. Esse procedimento pode ser repetido mais de uma vez, com diferentes cores, que sobrepõem-se umas às outras para a formação de uma imagem feita de vestígios. 

Há dois tipos distintos de manipulação da lógica de sobreposição neste trabalho: por um lado, há estampas que operam por adição, nas quais as marcas do gesto se depositam umas sobre as outras. Nelas, a justaposição é a tal ponto empregada como procedimento que o resultado obtido frequentemente conduz à dissolução aparente das camadas, uma vez que estas se confundem e já não são facilmente discerníveis enquanto tais. Mas existem, também, estampas nas quais essa lógica é parte ativa de uma formação por complementaridade. Aqui, as camadas dependem umas das outras para a construção de determinado padrão; as formas se entrelaçam em uma relação de continuidade ou suplementariedade. Ambos os tipos de manipulação, é claro, podem se combinar, sendo o resultado, em todos os casos, uma espécie de fusão ou amálgama, que se concatena a partir do procedimento de montagem adotado pelas artistas, no qual as estampas são coladas rentes a formas recortadas de uma chapa de compensado de madeira naval – um material que, curiosamente, deixa à mostra, em suas bordas, sua fatura multilaminada. Desse modo, o que nos é apresentado são objetos planos com formato e espessura bem definidos, cuja superfície e cujas laterais parecem ter surgido da estratificação de camadas.

Estratos do tempo

Em célebre estudo sobre os tempos históricos, o alemão Reinhart Koselleck apresenta aos leitores uma vigorosa imagem, que empresto como subtítulo desta seção: estratos do tempo(1). Segundo o historiador, precisamos nos servir de metáforas para falar sobre o tempo, pois só podemos representá-lo por meio do movimento em unidades espaciais. Diante disso, a metáfora espacial - especialmente a geológica - porta, de largada, uma vantagem: a de remeter a diversos planos, com durações e origens distintas, mas presentes simultaneamente.

 

Essa mesma figura, deslocada de contexto, pode ser mobilizada para compreendermos o conjunto de obras em questão. Em sua produção anterior, tanto Adriana Moreno quanto Marina Zilbersztejn recorreram a imagens da geologia e da arqueologia como fonte de inspiração para sua prática artística. Trabalhos como In situ (2020) valiam-se de fotografias de fósseis animais, vegetais e tipologias geológicas, objetos recolhidos de acervos de museus de arqueologia, entre outros, para a produção de estampas que ora reiteravam, ora desarticulavam a disposição ordenada, taxonômica, tabular, classificatória e comparativa que costumamos encontrar em inventários e catálogos museológicos. Em Cacos, a fonte imediata de inspiração são imagens e figuras recolhidas de artigos científicos ilustrando os “motivos mínimos” e os fragmentos pintados da cerâmica Guarani e Tupiguarani de sítios arqueológicos na bacia hidrográfica do Rio Paranapanema, no lado paulista, e na área da Mina Dois Irmãos, em São Mateus do Sul, no Paraná.

Também em Cacos, portanto, a aproximação com as fontes escolhidas é mediada pelo saber científico. Adriana e Marina não partem de peças, objetos, fragmentos e vestígios arqueológicos em si – isto é, da evidência material –, mas de esquemas conceituais e modelos de representação e elaboração científica do mundo material. Há, entretanto, uma singularidade nesse trabalho: nele, os esquemas que se prestam a decodificar, ordenar e estabelecer diferenças e padrões de repetição são transformados em estampas espessas, feitas do acúmulo e da sobreposição. É como se sua espessura concreta fosse uma forma de devolver tangibilidade às ilustrações, restituindo-lhes a temporalidade que lhes foi retirada através dos procedimentos de abstração e redução que visavam evidenciar os “motivos mínimos” que se repetem e se espelham na formação de malhas, tramas e padrões complexos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Na condição de estampas feitas do acúmulo, as peças em Cacos fazem transparecer uma temporalidade quase física ou literal, tangível como um bloco feito de camadas justapostas em simultaneidade. Em vez de recorrerem a modelos de representação científica para situar ou localizar no tempo (em um tempo abstrato, numérico, em escala de progressão, contado em unidades de anos, décadas, séculos, ou em meia-vida de carbono 14), o que Adriana e Marina fazem é transformar os esquemas extraídos do universo da ciência em um conjunto de formas palpáveis, concretas, revestidas de temporalidade: no limite, nos sentimos como se estivéssemos diante de pedaços (ou estratos) do tempo.

Um tal ímpeto de devolver o tempo às ilustrações não implica nem uma enganosa tentativa de retorno ao que se supõe ser o estado original ou autêntico das coisas, nem uma busca por reestabelecer uma totalidade perdida. A prova disso é que, ao fim e ao cabo, os fragmentos em cerâmica representados pelos esquemas e ilustrações utilizados como ponto de partida não são reconstituídos ou re-apresentados na forma de novos objetos, de natureza fac-similar aos anteriores. Aqui e ali, o que vemos são resquícios da procedência mediada das imagens utilizadas como ponto de partida: a linearidade e a precisão lapidar do corte sem rebarbas de algumas das peças da série, bem como a sua silhueta nitidamente desenhada, são todas características que remetem ao corte seccionado (transversal, longitudinal ou oblíquo) do desenho científico, destinado a ilustrar ou demonstrar o mais claramente possível o formato de seu objeto – neste caso, os vasos cerâmicos Guarani e Tupiguarani.

Por outro lado, em Cacos, esse tipo de disposição em cortes seccionados, quando aliada à espessura multilaminada do compensado de madeira naval, é capaz de evocar não apenas o vocabulário da arqueologia e o da geologia, mas também o da biologia, ou, mais especificamente, o da histologia. Diante das peças apresentadas, algo evoca um preparado histológico, a superfície ultrafina de um corpo espesso fatiado, submetido à coloração e então ampliado para que suas estruturas e camadas constitutivas possam ser melhor estudadas. Essa associação não é de todo fortuita: além de tornar visível a estrutura e função dos tecidos biológicos, as lâminas histológicas nos permitem visualizar – como no caso dos estratos, no domínio da geologia – um processo de formação. E se é processo de formação que estamos tratando, é também de movimento, de construção, de desdobramento, de fixação, de prolongamento; enfim, de tempo.

a marca que conta

Falar de um objeto bidimensional como materialização do tempo talvez possa soar contraditório. Desde o célebre ensaio de Lessing sobre o Laocoonte, ou mesmo antes, nos acostumamos a estabelecer uma separação entre as artes do tempo (a poesia e a música, por exemplo) e as artes do espaço (a pintura, a escultura). Essa distinção foi reelaborada por Clement Greenberg e, em seguida, problematizada tanto pela teoria da arte quanto pela produção artística em geral, que a tomou como alvo das mais legítimas objeções. Mas, por mais que consideremos esse um axioma superado, as formas de incorporar o tempo em uma obra de arte bidimensional sem recorrer à duração ou a recursos narrativos (como em um vídeo, por exemplo) seguem apresentando-se como um desafio. E em Cacos, esse desafio é encarado de modo notável: as estampas, nesse trabalho, carregam uma marcada dimensão temporal ainda que elas aconteçam estritamente no espaço. Como, exatamente, isso ocorre?
 

Um elemento importante para tanto é o uso que é feito das marcas, dos vestígios ou do caráter indicial do traço. Como já sinalizamos, o procedimento da monotipia conta a favor nesse aspecto. Acredito que imagens registrando as etapas desse processo facilitem o nosso entendimento: comparemos, por exemplo, o verso e a frente de uma mesma monotipia – isto é, o desenho feito no dorso de uma das estampas (durante o processo) e o resultado final, que é como seu avesso. No primeiro, o que vemos é um desenho – neste caso, a representação de um padrão com linhas mais facilmente discerníveis. Já no segundo, estamos diante das marcas desse desenho sobre aquilo que antes descrevi como uma “superfície sensível de contato”: o resultado são manchas, resíduos, vestígios, marcas acidentais ou involuntárias que procedem das mais mínimas nuances do encontro entre a tinta e o papel sobre o qual o desenho foi realizado. Grãos de poeira, variações de força e pressão, a diferença causada pelas condições de umidade e de aderência da tinta; tudo isso é capturado e materializado na forma de ruído. Ao fim e ao cabo, o que visualizamos são os rastros deixados por uma ação ou gesto que ocorre não no aqui e agora, mas em um momento anterior – isto é, em um outro tempo. Em uma das estampas, na qual o que vemos é a marca das mãos (e, por extensão, do gesto) das artistas, esse procedimento é ilustrado de modo exemplar; nela, tudo são vestígios, sinais ou indícios que materializam uma antiga presença. Índices, portanto.

Ao fornecer a definição de índice em sua célebre Semiótica, Charles Sanders Peirce escreve de forma sintética e bastante esclarecedora: “um signo, ou uma representação, que se refere a seu objeto não tanto em virtude de uma similaridade ou analogia qualquer com ele [...], mas sim por estar em uma conexão dinâmica (espacial inclusive) tanto com o objeto individual, por um lado, quanto, por outro lado, com os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve de signo(2)”. E, em seguida, ele explica: “psicologicamente, a ação dos índices depende de uma associação por contiguidade, e não de uma associação por semelhança ou de operações intelectuais(3)” Sobre os índices, Peirce também escreve: “tudo que nos surpreende é um índice, na medida em que assinala a junção entre duas porções de experiência. Assim, um violento relâmpago indica que algo considerável ocorreu, embora não saibamos qual foi o evento. Espera-se, no entanto, que ele se ligue com alguma outra experiência(4)”.

Um exemplo conhecido e bastante didático: houve um incêndio. Sem apelar ao índice, podemos representá-lo recorrendo à própria palavra “incêndio”, através de uma relação arbitrária; podemos também estabelecer uma relação por semelhança, através da imagem do fogo. Mas nenhuma dessas representações faz menção à passagem do tempo, à ação pretérita. O tempo passado, no entanto, pode ser facilmente evocado quando recorremos a um índice, fazendo referência à fumaça e às cinzas, por exemplo – isto é, aos indícios de uma ação que não podemos acessar senão pela memória, por uma relação contingente ou pelo que Peirce chama de uma conexão dinâmica, que assinala a junção entre duas experiências.

As ciências que trabalham com fósseis (a exemplo da geologia) ou com a cultura material (a exemplo da arqueologia) valem-se de nossa capacidade psicológica de estabelecer conexões dinâmicas para que possamos extrair dos vestígios uma série de conhecimentos sobre diferentes formas de vida ou sobre culturas que existiram em outras épocas, das quais nos restam apenas resquícios. No caso do trabalho de Adriana e Marina, o que ocorre é uma operação um tanto distinta. Os índices, vestígios, manchas e resíduos apontam para uma ação (a de desenhar um padrão, por exemplo) passada, mas não exigem de nós um esforço dedutivo direcionado. Na realidade, as marcas em Cacos são como ativadores de uma memória temporal; uma memória que permanece em suspenso, sem evocar objetivamente uma experiência específica. Elas apontam para o intervalo entre duas experiências, para a própria dimensão do tempo que nos escapa. Em outras palavras, são como marcas que contam.

NOTAS

(1) KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre a história, trad. Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2014.

(2) PEIRCE, C. S. Semiótica, trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 74 (grifos da autora).

(3)  Ibid., p. 76.

(4)  Ibid. p. 67.

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Cacos (2022),
de Adriana Moreno e Marina Zilbersztejn

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Processo de trabalho em Cacos. Verso e frente de monotipia sobre papel, 2020

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